quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Identidade clandestina

Leblon - RJ
Escuta a tua respiração,
escuta essa certeza de vida. 
Escute a certeza do teu corpo úmido
longínquo,
tão seu que é perto demais para se ver.
Sente que a saliva escorre,
que o teu cabelo repousa frouxo no teto de seus pensamentos.
Não abra os olhos por alguns instantes.
Existem coisas que são vistas a olhos nus
e outras que são vistas de olhos fechados:
Portas abertas servem para entrar,
igrejas fechadas adormecem em cristo.
Ouve a tua respiração pesada.
Porque afunda em si?
Esse elevador que é o teu tórax inflando e esvaziando,
essa tua dor de desembarcar no ultimo andar.
És um corpo com mãos,
um corpo com formas.
Deite-se como os teus braços,
repouse soluto como as tuas pernas,
esse corpo que te torna possível,
lágrima que te torna real.
Quem mora dentro de ti? 
Me diga e eu te darei um rosto.










quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Alguma coisa sobre a falta



Saudade é uma imaginação ousada, roça no meu rosto imitando a sua barba. Arrepia a minha nuca com a língua que me falta. E falta tanto que a minha espera transborda. Meu corpo arrepiado precipita o seu beijo, é a saudade repassando o caminho por onde você já esteve e ela só não me mata porque promete morrer, na rendição o homicídio doloso.

Sou como o copo sujo de leite, que tem a borda marcada pela linha branca, meu corpo é da sua medida: seco até a borda, cheio de sede. Sou qualquer coisa desesperada e aflita que se entrega às lembranças das mãos e do beijo denunciando o desejo infinito. Essa urgência infantil que me faz caminhar do frio ao fogo olhando a noite quieta, que adormece às preces prometendo o dia seguinte. O sol nasce longe e esse silêncio que perpetua inconveniente. Dizem que o mergulho num abraço fundo deve ser contido quando estampado na face, mas como disfarçar a morte da saudade? Como ler e reler um livro e não ansiar pelas páginas seguintes?

Meu exagero está do lado de dentro, o que escapa de mim são meus olhos perdidos te fitando, são os calafrios dos seus "quase- toques" na madrugada inconsciente, são as palavras que digo e em seguida disfarço desajeitada. E é só quando encontro seus braços que busco, cheia de fome, reafirmar suas mãos. Assassinamos a saudade entre beijos afoitos e apertões famintos.

Não existe crime, existe eu e você.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Rua sem saída


Não foi porque eu li Clarice e ela sempre me convence. Também não foi por um de seus vários “nãos” nem muito menos por aquele ligeiro “sim”. Não foi por eu não descer as escadas e me recusar matar os degraus para nos salvar. Não foi um daqueles gotejar de lágrimas nem soluço nervoso pois os olhos não se puseram a transbordar. Não foi por gastar a saliva, as horas vestida e nenhuma atenção especial. Não foi por eu ser mulher ou talvez uma parcela de culpa tenha sido por minha feminilidade, que não está nos vestidos não vestidos nem nas saias que desdenho. Não foi por deixar de avisar nem foi por calar de cansaço. Não foi pelo desentendimento nem pela coerência encontrada apenas na confusão. Não foi por não te amar.


Não foi.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Neruda

Talvez

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos... 

Pablo Neruda
 

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Em boca fechada não entra mosca





Certas vezes me calei dizendo algo. Poucas foram as vezes que não falei com a intenção exata de não dizer. Será que fui compreendida? Estou pensando em reunir todas as minhas falas, ditas ou silenciadas e embrulhar numa caixa bem grande, com laço exagerado de fita numa cor bem chamativa e dar de presente, assim, no maior descaramento. Quem sabe a curiosidade e o carinho no ego façam com que minhas palavras sejam lidas. Mas muita coisa nem viveu, perdeu o sentido, ficou atrasada. As palavras também morrem e com elas um pouquinho de nós mesmos. O sonho de todo monólogo é virar um diálogo, uma conversa e nem sempre esse sonho se realiza.
Talvez eu deva não dizer mais. Calar-me para sempre. Passei alguns dias recolhida aos meus segredos, fiz questão de construir cada um deles, guardá-los bem seguro dentro de uma capa qualquer que servisse. Foi bom enquanto durou.


Acho que estou morrendo um pouquinho.














sábado, 7 de agosto de 2010

Minha ânsia por Vinicius ou Minha ânsia, por Vinicius

Ânsia 

"(...)
A carne fugiu
Desapareceu devagar, sombria, indistinta
Mas na boca ficou o beijo morto.
A carne desapareceu na treva
E eu senti que desaparecia na dor
Que eu tinha a dor em mim como tivera a carne
Na violência da posse.
Olhos que olharam a carne
Por que chorais?
Chorais talvez a carne que foi
Ou chorais a carne que jamais voltará?
Lábios que beijaram a carne
Por que tremeis?
Não vos bastou o afago de outros lábios
Tremeis pelo prazer que eles trouxeram
Ou tremeis no balbucio da oração?
Carne que possui a carne
Onde o frio?
Lá fora a noite é quente e o vento é tépido
Gritam luxúria nesse vento
Onde o frio?
Pela noite quente eu caminhei...
Caminhei sem rumo, para o ruído longínquo
Que eu ouvia, do mar.
Caminhei talvez para a carne
Que vira fugir de mim.
No desespero das árvores paradas busquei consolação
E no silêncio das folhas que caíam senti o ódio
Nos ruídos do mar ouvi o grito de revolta
E de pavor fugi.
Nada mais existe para mim
Só talvez tu, Senhor.
Mas eu sinto em mim o aniquilamento...
Dá-me apenas a aurora, Senhor
Já que eu não poderei jamais ver a luz do dia."

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

...

e o vento frio que ressecava a pele, assobiava sério nos ouvidos dela. Nem a blusa branca de mangas compridas aquecia o corpo, nem o vento frio esfriava aqueles constantes pensamentos. Na casa, nenhuma palavra no sofá, se quer alguma pendurada no varal esperando secar, nem mesmo no tanque de molho, nada. Seus dedos frios, seus pés escondidos pelas meias de algodão, eram tão menos importantes do que a espera. Podia resumir-se em uma figura, um corpo que ainda sentia frio por algum descuido da natureza. Um corpo. Toda mulher que espera é somente um corpo.