domingo, 26 de setembro de 2010

Nesse meio tempo que se chama...

Ela se via à espera e como toda espera, era calada e branca. Vazia - Mas esse vazio da espera é tão cheio, mas tão cheio que é vazio entende? Pensou por um instante. 
Passava os olhos por textos que ela escrevera em dias de tumulto. Aquelas frases e parágrafos poderiam ser escritos mil vezes que seriam iguais – talvez seja isso o que chamam de destino. Ela tinha de escrever aqueles textos, hoje considerados antigos, era como um modo de liberdade personificada. Sentia cada um deles com a voracidade de um “agora”. Cada palavra nua era ela vestida ou vice e versa.
Felícia sabia que, apesar de cada carta e cada texto terem dono, ele não saberia entender a grandeza que ela lhes oferecia pois essa grandeza, no papel, era vulnerável a pequenez dos homens que tem medo de ver. Seus escritos eram tão ela, que nem mesmo a própria conseguia enxergar com clareza. Sabia que todos os textos transbordavam numa nudez quase que sem-vergonha - quase.
Mas a espera. Felícia agora vivia a espera. E como toda ela, engajada em viver, não havia outra face se não a de quem espera, não havia uma posição para as mãos pois a espera nos faz esquecer que temos mãos, não havia um ponto fixo para o olhar, ele estava perdido naquele nada que é a visão da espera. Não havia ela naqueles dias, só havia a espera, esta que sem pudor consegue ser ao mesmo tempo o seu avesso, o inesperado. Não existia tempo para contar, somente o cansaço e o grande vazio branco. Nem uma palavra, nem um perdão,

a espera.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Eu só sei viver



Nós nascemos com vida e morremos sem ela, por isso eu tenho medo da morte. Eu só sei viver, eu não sei morrer! Mas as vezes a gente morre de dia e nem percebe.
Tenho vivido atenta, sempre conferindo a presença de ar no meu peito. A morte não é uma escolha, se fosse, toda vez que prendêssemos a respiração morreríamos. Suspiro muitas vezes pois viver cansa mas ainda assim o que sei fazer e portanto é a minha escolha, viver, viver, viver. Vivo tanto que as vezes morro no meio do caminho.
O ser humano é mais frágil do que se imagina. Morre-se por viver demais e por colocarmos a nossa conta em risco toda vez que se quer pagar pra ver. Morre-se num cruzamento de ruas congestionadas, morre-se à luz do dia ou no silêncio da noite, morre-se afogado em uma lágrima, morre-se muito de dores no peito, por um aperto cruel que pressiona todos os sentimentos como fossem espremidos, morre-se. Morre-se toda vez que se vive.


Acho que estou aprendendo morrer.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Devolva-me



Você deu toda a sua alma para ele, mesmo sem saber exatamente o que era isso, ofereceu cada partícula sua que continha o seu próprio cheiro. Você deu o seu cheiro a ele. Cada instante da sua vida era dele, cada palavra que se vestisse de metáfora era por causa dele e já vinha com o nome da inspiração nas entrelinhas: ele. Hoje você colocou uma placa na porta de casa, “procura-se” e a vizinha veio dizer: minha filha, você esqueceu de escrever o que você procura, com o coração aflito você explicou a ela que era o que estava escrito lá, estava à procura de si mesma. Se procurando desesperadamente, entre a angústia de se ter de volta e a necessidade da devolução.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O pensamento e o cone


Tropeçou nos cones que cercavam a areia delimitando o espaço. Estava tão distraída admirando aqueles garotos de pernas ligeiras que nem pôde ver a praia demarcada por faixas e cones laranja e branco

– Ei! Cuidado aí... Gritou um moleque de uns doze anos. Sem perceber, ela havia derrubado um dos cones. Os meninos faziam aqueles movimentos de zigue e zague com a bola que o olhar de qualquer um se deixa hipnotizar. Pôs o cone de volta no lugar e resolveu terminar a sua caminhada por ali. Ainda pôde escutar o menino resmungar, “mulher louca”, mas não deu bola.

Gostava de caminhar na praia porque lá parecia um lugar infinito, nunca aguentava chegar até o final e isso sempre deixava um gostinho de "quero mais" que ela guardava para o dia seguinte. Mas naquele dia a largura sem fim da areia foi finalizada por aqueles cones que saltaram de repente na sua frente.

Já em casa, enquanto tomava banho para tirar o sal e a areia, buscava um pensamento antigo que já não tinha novidade pra contar. Tomou banho com as lembranças e se secou com possíveis finais felizes. Foi até a cozinha esquentar o almoço. Não tinha vontade e comeu só com a fome. Arrumou o armário como pretexto de se perder em pensamentos - Coisas como arrumar armário facilitam a organização dos pensamentos. Separou umas blusas daqui, outras de lá, tudo na mais perfeita ordem. Suas arrumações com coisas eram cheias de coerência, facilitando encontrá-las quando precisasse. Assim como as roupas, a coerência só pertencia a ela, o que fazia dela a única que entendia seu armário. Lá no fundo avistou uma blusa que não usava mais e naquele momento lembrou novamente do assunto e se agarrou aos últimos fatos na esperança de poder reformular, repensar, mas tudo não saía do lugar.

Repassou as tarefas do dia e entre uma coisa e outra lá estava o mesmo fato, a mesma história. Havia uma coisa pronta e coisa pronta não dá trabalho nem papo. Se sentiu acuada pois nada tinha a pensar mais sobre aquele assunto. Descobriu que o pensamento também tinha fim e que ele era determinado pela lembrança. Andava distraída demais, louca demais para perceber.