sábado, 31 de julho de 2010

Um poema de dar dó



Meu silêncio contou
que um poema sem nó
é um poema só.
Vagueia sem quê
nem para quê.
Já disse a ele
que a culpa é dele,
não larga de mim
me deixando tão assim.
Com peso e sem mala,
com dor mas sem palavra,
descarada,
sem nó,
muito só.
Um poema sem dó
não chega nem no fá,
o sol lá em cima
cochilando sem queimar.
Eu digo, pesa!
mas ele sem palavra
continua calado.
Então eu digo, queima!
e ele sem dó de mim.
Nem fá, lá...
nada.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Barulhinho bom


Vem chuva,
molhar meu atrevimento,
limpar minha vontade,

sugar todo o meu seco,
encharcar meus poros,
insossos, meninos.

Vem dizer que goteja,
que devasta,
que inunda.




Chuva pra entrar
trazer,
dizer.

Chuva pra ser de pingo,
muitos pingos.
Dosada.

E eu conta-gotas,
acreditando que posso
mas quem pode é chuva. 

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Mar pra virar areia


Eu estou chorando lágrimas, pois lágrima é a única coisa que eu posso chorar. Quanto mais lembro, mais choro. E poderia ser um choro feito de fotografias ou de perfumes que fizeram parte de mim. Mas ainda choro com lágrimas. E já que elas são molhadas, digo que estou chorando um mar inteiro, pois um grande mar faz mais sentido do que essas poucas gotas, salgadas.
Pode ser que um dia isso pare e com o seco as lembranças fiquem menos molhadas, mas por enquanto ainda faço tempestade dessa história, tenho o cuidado de umedece-la todos os dias de manhã e em todas as noites que não tenho sono.Qualquer pensamento é motivo para a garganta apertar e eu não sei qual palavra te dar. Me desculpe, amor. Estou menor do que você costumava ver, me sinto tão pequena que qualquer boca me engole inteira. Tão pequena, amor, tão pequena. Eu era uma imagem mais alegre, mesmo ferida, hoje sou apenas lágrimas, nada mais do que gotas de tristeza.
Eu quero chorar tinta que mancha, eu quero chorar música que fica, perfume que gruda, fotografia que marca, eu quero chorar pra sempre. Pois o que me preocupa é que as lágrimas secam. A lembrança faz do rosto um borrão sem perfume.

Mas lágrima ainda é a única coisa que eu consigo chorar.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

O destino das rosas

No jardim as flores murcharam
desinteressadas em crescer,
a vida escondida
nem se pôs a aparecer.

De volta no mesmo ponto
a frase já entoou,
sorriso e abraço apertado
já não dou por desamor.

Sem cócegas nem abre-alas
dizendo o que não falou,
abrindo o que não queria
querendo o que já deixou.

Os dias são só estradas,
soluço desanimou.
O medo que suspira
e rosa desabrochou.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Mas a cada dia nascem mais meninas




Tinha o cabelo liso e a vontade crespa. Tinha dois olhos pretos e muitos sonhos azuis. Sabia pouco sobre meninos e viajava muito. Escutava milhares de discos mas só gostava mesmo de alguns. A família é toda gorda e a menina era bem magrinha. Eram frequentes os encontros entre família até que passaram a guardar o estômago somente para os domingos. É sempre uma fartança grupal, além da ignorância grupal. Tinha a necessidade de escrever e a inspiração passageira. As vezes dormia entupida de palavras e noutras dormia vazia. Tinha por destino amar e como desatino Roberto. Por Roberto, tinha também os olhos frouxos, que soltavam água salgada quando não se entendiam. Ela podia gastar as horas pensando na vida. Era inteligente para arrumar “porquês” e nem sempre o mesmo para descobrir respostas. Sabia assobiar bem e chamava todos com a boca. Falava pouco e quando preciso muito. Tinha sede de entender e fome para viver. Era menina quando viva e lembrança quando...



Mas a cada dia nascem mais meninas.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Recado




Me ame com os olhos nus. Me dispa com as mãos sujas e nos limparemos entre o suor e a vontade. Me olhe com o amor, me fale com a coragem e me procure com a saudade. Me roube com a certeza e não me devolva por ter incerteza. Me queira com a loucura e me tenha com todo o perigo. Hoje chegarei mais tarde, tem comida na geladeira é só colocar para esquentar,
 
Beijos, até de noite.

domingo, 11 de julho de 2010

O único problema é que nascera humana.

Sentou cansada no sofá. Na verdade estava exausta. Aqueles dias não estavam sendo fáceis e completavam-se dois meses de insônia. A graça lhe escapava pelas mãos ao ponto de ficar completamente sem graça quando alguém lhe chamava pelo nome, “Graça!”. Depois da nostalgia, sabia que poderia vir a ironia, aquela graça malandra que todo mundo tem guardado. Não pensou no futuro. Só o presente mal cheiroso é que importava. Quem aguenta sentir mal cheiro mais que alguns minutos?!

Decidiu-se pela loucura e foi por telefone que ela falou. Resolveu aquela situação que não podia mais sustentar, ou cheirar se assim posso dizer. O estranho é que junto com uma leve satisfação selvagem, ao desligar o telefone seus pensamentos continuaram a viver, como se nada tivesse acontecido! Além de louca seria cruel?

Não se levantou, nem buscou ar na janela. Não quis contar a um amigo nem se debulhou em lágrimas. Apenas viveu. Pensou que todos deveriam ser daquele jeito. Depois pensou em chorar, mas a vontade não vinha. Sentiu-se muito mal por não ter aguentado mais um pouco. Por ser tão humana que o maldito cheiro ela não pudera suportar. É a vida. Por falar em vida, o cheiro horrível vinha de um animal morto, contei? E foi só depois que ela descobrira o óbito, que decidiu não sentir mais o tal cheiro.
Agora podia viver.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Um corpo nu




Soube que mulheres gostam de usar bolsas. Houve uma época que elas eram enormes feitas sob medida, a medida do desespero. Marina é da parte que sobrou – as que não gostam de bolsas. Nem pra lá nem pra cá, o bom mesmo é guardar as necessidades no bolso.
Além do sangue e das curvas que marcam, mulheres costumam usar penduricalhos que servem como enfeite ou como acréscimo de si mesmas. Marina gosta de pouco e com o pouco sentia-se bem, bem leve. Olhando nas ruas, muitas vezes chegou perto de se arrepender ao ver que tantas outras, muito parecidas com ela, exibindo suas “bolsa-acréscimo”, pareciam ter encontrado a combinação perfeita. Mas se tão logo observasse mais além, o que fazia de costume, via mulheres que mesmo sem nada pendurar, deixava estampado no rosto que faltava-lhes algo. Figuras que denunciavam seus vícios e sua pouca independência nesse mundo contemporâneo. A verdade é que o mundo continua sendo mundo e mulher continua sendo mulher. Esses corpos viciados, andavam tristes pelas ruas e por vezes esbarravam no de Marina, representante de uma pequena porcentagem feminina. Leve como quem voa e como quem não tem e não quer ter nada acrescentado em si. Ela gostava do rascunho e não via graça no desenho pronto, pintado. Achava que um quadro pronto determina o fim da linha. Se alguém imparcial – alguém que não é gente e não existe, pois a imparcialidade é o gosto da ilusão, visse com seus olhos de imaginação essas mulheres que caminham pela cidade com abstinência de bolsa, e outras, apenas algumas, que caminham leves apreciando seus próprios ombros nus, o peso cru de seus corpos, este poderia se confundir.
Marina continuava mulher e ainda gostava de caminhar leve, mas passou a ficar intrigada com a denúncia dos corpos. Sentia que olhando as mulheres, tão femininas quanto ela, podia quase que adivinhar seus nomes secretos. Os traços, pintados ou crus, diziam mais do que gostariam. Tudo escapa do corpo e disfarça-se quase tudo com palavras. Dias se passaram e numa noite dessas, calada, ereta na cama, Marina orgulhou-se de não precisar de bolsas e de ser feliz caminhando com pouco. Naquele instante, lembrou de Orlando, não o tinha mais, somente as lembranças que levava consigo por onde quer que fosse.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Dias como Lóri...

"(...) Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos
de um animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a
coisa ignorada que o estava prendendo — a ignorância do movimento único, exato e
libertador era o que tornava um animal histérico: ele apelava para o descontrole —
durante o sábio descontrole de Lóri ela tivera para si mesma agora as vantagens
libertadoras vindas de sua vida mais primitiva e animal: apelara histericamente para
tantos sentimentos contraditórios e violentos que o sentimento libertador terminara
desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal ela não sabia sequer como, estava
cansada do esforço de animal libertado.
E agora chegara o momento de decidir se continuaria ou não vendo Ulisses. (...)"

Clarice Lispector em, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.